sábado, 7 de janeiro de 2012

A sala dos encontros: potências do estudar*


Por força da necessidade, logo depois de iniciar meus estudos universitários em ciências biológicas, assumi, como muitos outros colegas de graduação, a função de “professor particular” de algumas crianças e jovens. Nesses anos iniciais de magistério, vividos na própria sala do apartamento em que morava com minha mãe e irmã, uma realidade consideravelmente diversa, para não dizer adversa, daquela que encontrei, posteriormente, nas escolas públicas e particulares pelas quais passei, na experiência com o Movimento Sem Terra e com o Movimento LGBT, ou mesmo nas universidades públicas e privadas em que exerci docência, surpreendeu-me notar quanto o estudar parecia cansativo, esgotante, consumido, esvaziado de qualquer potência. Os pais me procuravam porque os filhos não queriam e precisam estudar, não iam bem em alguma disciplina, estavam prestes a reprovar em outra ou, e era isso o que mais me parecia aterrorizante, simplesmente não conseguiam apreender uma matéria. Os professores indicavam aulas particulares pelos mesmos motivos, o aluno precisava estudar, precisava de apoio e daquele jeito não podia ficar. Por sua vez, os próprios alunos vinham repetindo os mesmos argumentos, não aprendiam, não sabiam, ou simplesmente não conseguiam gostar de qualquer coisa fosse.
         Sei que pode parecer piegas, quando não narcisista, mas gostaria de usar a minha pouca experiência de 23 anos de idade, daquele que vive, hoje, entre o ofício de estudante e o ofício de professor, para entramos na arena do estudar. Tomo as imagens do estudar por considerá-lo um exercício central na relação entre dois acontecimentos, por excelência, típicos de uma sala de aula, o ensinar e o aprender, portanto, entre o encontro daquele que ensina e daquele que aprende, o encontro entre o professor e o estudante. E para mim, não há melhor maneira de adentrar no espectro do estudar senão através de uma história, uma anedota, eu diria. Se há alguma coisa que aqueles meninos e meninas que ocupavam as cadeiras de minha sala me perguntavam freqüentemente era: porque nós estudamos? A pergunta pode parecer fácil e risível, típica daqueles que não sentem nenhum apreço pelas letras e números, mas a resposta é deveras embaraçosa. Quem de nós ousaria responder?
Tentemos, pois, não nos custa nada. Durante o exílio na Babilônia, os judeus, que já não podiam celebrar os sacrifícios, uma vez que o Templo tinha sido destruído, confiaram a preservação da sua identidade ao que chamaram de Talmud: o estudo do culto, em vez de realizarem o próprio culto. Aliás, Tora não significava, nas origens, Lei, mas doutrina, e o próprio termo Mishnah, que designava a compilação das leis rabínicas, deriva de uma raiz cujo sentido era antes de mais o de repetir. Quando o édito de Ciro autorizou os Judeus a regressarem à Palestina, o Templo foi reconstruído, mas a religião de Israel ficou para sempre marcada pela piedade do exílio. Ao Templo único, onde se celebrava o sacrifício solene e de sangue, vieram juntar-se numerosas sinagogas, simples lugares de reunião e de oração, e o poder dos sacerdotes viu-se reduzido pela crescente influência dos fariseus e dos sábios das Escrituras, homens de estudo e do livro.
No ano 70 d.C, entretanto, as legiões romanas voltaram a destruir o Templo. Mas o douto rabino Joannah ben-Zakkaj, fugido secretamente da Jerusalém sitiada, obteve do, então imperador, Vespasiano autorização para continuar o ensino da Tora na cidade de Jamnia. Desde então, o Templo não foi reconstruído e o estudo, o Talmud, tornou-se o verdadeiro templo de Israel. A figura do doutor e do letrado, respeitada em todas as tradições ocidentais, adquire assim uma significação messiânica desconhecida no mundo pagão: uma vez que na sua busca é a redenção que está em jogo, ela confunde-se com a do justo, com sua pretensão de salvação. Embora, não caiba aqui, faltaria espaço e tempo para não ser maniqueísta, fazer uma história da pedagogia ou, se preferirmos, da pedagogização da sociedade, sabemos bem onde o legado do judaísmo nos levará: a invenção da sala de aula. A sala de aula não existiu desde sempre, enquanto artefato político-cultural, suas formas, o sentar em filas, o quadro, o levantar a mão, a chamada, as avaliações, e até nós mesmos, alunos e mestres, temos uma história bastante específica que não chegaria a pouco mais de cem anos. Mas seja de que forma for, a sala de aula é o território do estudo, onde o aluno vai para aprender e o professor para ensinar. O Talmud dos nossos tempos.
         Temos então, de cara, um paradoxo: de um lado se ensina, do outro se aprende e essas são coisas essencialmente diferentes. Na sala de aula, nós, professores, ensinamos, transmitimos e apresentamos conteúdos, saberes, conhecimentos, conceitos, habilidades, competências, culturas, valores, condutas, modos de ser, estar e viver no mundo. Ensinar é transmitir, informar, ofertar, apresentar, expor, explicar. Corrijam-me se estiver errado, embora tenha “gazeado” algumas aulas de Didática, mas é algo mais ou menos assim, destacam-se os elementos simples dos conhecimentos e harmoniza-se sua simplicidade de princípio com a simplicidade de fato, típica dos espíritos juvenis e ignorantes. Ensinar é, em resumo, em um mesmo movimento, transmitir conhecimentos e formar espíritos – e podem adjetivar, aqui, “esse espírito” com o tiverem vontade (empreendedores, críticos, criativos, emancipados, humanos, enfim, etc). Transmitir um ensinamento, transmitir conteúdos, implica uma homogeneização, uma conservação, de tal maneira que o que se transmite continue intacto, e que seja o mais fiel possível, de modo que aquele que recebe um conteúdo, o receba o mais fielmente possível em relação ao que foi transmitido. Na ponta oposta, aquele que nada sabe, o sem luz, o aluno, apreenderia de modo fiel os conhecimentos transmitidos conscienciosamente pelos seus mestres, elevando-se gradativamente à sua própria consciência, graças à apropriação racional do saber e à formação do juízo.
Minha intuição no contato com aqueles estudantes que se dirigiam a minha casa justamente para estudar é que havia algo, que na época não sabia nomear, entre o ensinar e o aprender que tornava o estudo impossível, desgostoso e enfadonho. A sala de aula é o território da distância. O segredo da caixa preta da sala de aula é saber exatamente a distância correta entre a matéria a ser ensinada e o sujeito a ser instruído. Em uma sala de aula, um estudante nunca sabe, de fato, o que aprendeu, nem o que é aprender. Porque para que aprenda é preciso que alguém lhe dê uma explicação, que a palavra do professor rompa o mutismo da matéria a ser ensinada e que verifique que ele realmente entendeu o que acabou de aprender. Ou seja, não só a matéria a ser ensinada é incapaz de falar sozinha, como aquele que ouve, é incapaz de aprender qualquer coisa por si mesmo, ele desconhece a aprendizagem. Ele precisa reconhecer que não só não sabe de nada, como também não sabe o caminho para saber. Aquele que ensina é exatamente aquele que demonstra que o estudante não pode compreender nada sozinho, ele é o juiz e o senhor dos caminhos para saber todos os saberes.  A sala de aula torna-se este mundo dividido entre quem sabe e quem não sabe, quem é bom e quem é mau aluno, quem tem bom e quem tem baixo desempenho, quem segue e quem não segue as regras etc. Entre os espíritos sábios e os ignorantes, os espíritos maduros e os imaturos, capazes e incapazes, inteligentes e bobos.
Logicamente, estudar nesse regime ainda não é possível. Que chato é mesmo um mundo em que todo mundo, de partida, já um ignorante nato. Na sala de aula, estão todos os livros e todos saberes. Alinhados, ordenados, classificados. Todos os livros e cada livro em seu lugar. E todos à mão, perfeitamente disponíveis. Na sala de aula vive-se com a segurança de que os livros, convenientemente reproduzidos e transmitidos, cuidadosamente editados, anotados e selecionados, estão aí, num tipo de plenitude sem sobras, que é, ao mesmo tempo, a plenitude sem falta da cultura, a prova palpável de nossa imensa generosidade para com os jovens. Mas o estudante sente vertigem diante dessa totalidade tão plena. É como se um dia ele acordasse afogado. Pela primeira vez, sentiu que os livros, os saberes e conhecimentos dos seus mestres, na sua generosidade, não deixavam lugar para ele. Como o estudar pode ter espaço em um lugar no qual está tudo escrito? Esses estudantes se encontram impregnados de outras linguagens, de outros saberes e de outras formas de escritas que circulam por aí. Precisamos começar admitindo que os saberes não circulam mais apenas na sala de aula de sagrada e que nós, professores, deixamos de ser as figuras sociais responsáveis pelo seu gerenciamento. Outros saberes, fragmentos de saberes, saberes meio mosaicos meio fantásticos, circulam por outros canais sem pedir nenhuma autorização a quem quer que seja. A escola já não é mais uma instituição inquestionável. Hoje, estão nela aqueles que pensam que a escola tem um sentido, e esses sentidos podem ser muitos – do formar ao namorar, do conversar ao dar um futuro – e aqueles que pensam que ela não faz sentido nenhum.
Venhamos e convenhamos, escola parece mesmo fazer sentido?  Como se não bastasse, lá, onde estão todos os livros, também se fala constantemente dos livros. Os-que-conhecem-os-livros falam e falam demasiadamente dos livros. Na sala de aula, existem quase tantos sábios quanto estantes. Junto a um livro existe sempre alguém que-conhece-o-livro. Por isso, os livros sempre estão previamente lidos, esclarecidos, iluminados.  Os livros não têm margens ou os saberes estão sempre tão cheios de palavras sábias saturadas no texto. Não há espaço entre as linhas ou os espaços já foram ocupados pelos comentários dos sábios. Não há vazios entre as palavras e as letras. Na sala de aula só podem falar Os-que-sabem, e por isso suas palavras são sábias. Muitas palavras são mesmo pronunciadas na sala de aula. Demasiadas palavras que se negam a desaparecer. Demasiadas palavras que pesam, que se mantêm presas ao solo, que ocupam todos os rincões, que preenchem todos os vazios, que cobrem todas as superfícies. Na sala de aula, onde só falam Os-que-sabem, onde as palavras pesam, onde as palavras não querem desaparecer, não há lugar para o estudante. A pergunta tio, porque estudamos?  pode ser facilmente traduzida em: como gostar de estudar? Ou ainda como devolver ao estudar seu mistério? Porque caso o contrário, onde o estudante irá encontrar o lugar do estudar? Onde poderia o estudante encontrar um lugar se tudo já está dito, se já se sabe de tudo, se tudo já está convenientemente coberto por palavras sábias?
            Pensemos, só por um momento, que o estudante estuda. Sentado com os cotovelos sobre os joelhos e a testa entre as mãos. Atenção, concentração, ensimesmamento. Não está ainda se preparando para as avaliações bimestrais. Tampouco está escrevendo uma resenha, nem redigindo um trabalho para alguma disciplina. Deixemos, só por um momento, o estudante simplesmente estudar. Sem nenhuma tarefa programada, nenhuma matéria, nenhuma obrigação vir se misturar ao estudo. Nem sequer estar pensando em suas coisas: no amanhã, que hoje já ameaça com sua chegada; ou naquilo que ainda está nele, no dia de ontem. O estudante não pensa nem no ontem, nem no amanhã. Estendido no umbral do presente, o estudante já se esqueceu de qual foi o princípio de seu estudo e ainda não sabe qual será seu desempenho. O estudo é interminável.
         Quem conhece as longas horas de vagabundagem entre os livros, quando qualquer fragmento, qualquer código, qualquer inicial promete abrir uma via nova, logo abandonada em favor de uma nova descoberta, sabe bem que o estudo não só não pode ter fim, como também não o quer ter.  O estudo é o que interrompe, é o dom ambíguo, fascinante e perigoso, do estupor da suprema interrupção. A etimologia da palavra latina studim remonta a uma raiz st ou sp, que designa o embate, o choque. Estudo e espanto, studiare e stupire, são, pois, aparentados neste sentido: aquele que estuda encontra-se no estado de quem recebeu um choque e fica estupefato diante daquilo o tocou, incapaz, tanto de levar as coisas até o fim, como de se libertar delas. Ao abandonar-se ao estudo, o estudante renuncia a tudo que pode tranqüilizá-lo – e tranqüilizar a nós, professores, também. Não apenas as pequenas seguranças da vida prática, desse mundo diurno da ação e do trabalho, desse mundo seguro em que cada um é o que é, e sabe o que fez ontem e o que fará amanhã, mas também às outras seguranças da verdade, da cultura e da significação. O estudante, no estudo, perde o pé, perde-se. Por isso, o estudo é aquilo que o coloca em perigo, no máximo perigo. E a nossa escola não tolera o perigo. Não há estudo sem perigo da exposição. Nunca mais se saberá quem se é, onde está, de onde se vem, por onde se vai passar. Estudar é expor-se as estranhezas.
         O estudante vaga, divaga, vagabundeia. Extravagante, o estudante dá voltas, reviravoltas, permite-se rodeios, move-se lentamente, oferece-se pausas. A imagem do labirinto é a figura que convém ao lugar do estudo. Mas não se trata, aqui, de um labirinto circular e unívoco, aquele que não há bifurcações e que tem apenas um caminho que leva inevitavelmente ao centro, do centro ao último círculo, daí novamente ao centro e, assim, indefinidamente. O labirinto que acolhe o estudante não tem um ponto central que seja o lugar do sentido, da ordem, da claridade, da unidade, da apropriação e da reapropriação do constante. Se assim o for, o estudar não pode ter graça, nem despertar gosto nenhum. Qual seria a sua graça? O dédalo que o estudante percorre, multívoco, prolífico e indefinido, é um espaço de pluralização, de multiplicação. Uma máquina de desestabilização e dispersão, um aparelho que desencadeia um movimento infinito de sem-sentido, de desordem, de obscuridade, de expropriação. Disperso nos meandros de um labirinto, sem centro e sem periferia, sem marcas, indefinido, o estudante faz mais do que estudar. E o estudo que faz mais do que estudar, torna-se gosto, vontade, desejo.  Estudar é uma atividade que aumenta a potência porque é um modo de tomar consciência, de saber de sua própria força, de seu desejo pelo mundo.
         Não acredito que o estudante, nem mesmo os de espírito supostamente puros, tenha naturalmente um desejo de estudar, uma vontade de estudar. O estudante só procura o estudo quando está determinado a fazê-lo em função de uma situação concreta, quando sofre uma espécie de arrebatamento, de estado de paixão, que o leva ao estudar. Há sempre uma paixão por um livro, por um professor, por uma disciplina, por um conteúdo que forçar o estudante a procurar, que lhe rouba a paz de pensamento. Estudar também é enamorar-se tal como os jovens amantes. Estudar não é uma descoberta por afinidade, nem feita boa vontade. O erro da escola é pressupor no estudante uma boa vontade de pensar, um desejo, um amor natural pelo estudo. Se assim o fosse, o estudo atingiria apenas coisas abstratas que não comprometem, nem perturbam ninguém. As coisas, os mundos possuíram uma verdade lógica, uma verdade possível que não passaria de uma seleção arbitrária. Só valeriam segundo sua significação explícita e, portanto, segundo nossas próprias convenções escolares. Não seriam produtos de um encontro arrebatador que lhes garanta autenticidade.
         Estudar depende mesmo de um encontro com alguma coisa que nos força a pensar, ele precisa ser conquistado, produzido, desejado em uma sala de aula. A sala dos encontros. Sim, nós encontramos pessoas, coisas, objetos, mas também encontramos entidades, movimentos, idéias. Nesses encontros, cada um doa alguma coisa, se vê roubado por outro, arrebatado por uma paixão. Um estudo é uma sala de encontros com matérias, conteúdos, objetos, coisas, idéias, pessoas. Mas não nos desesperemos, cada um pode precisar apenas de um pedaço de toda aquela matéria com a qual se encontra, segundo a imprevista conexão que faz, segundo a sua insondável necessidade. E ele só faz isso quando algo rouba a paz e os nervos daquele que estuda. Estudar não começa na cabeça, começa na pele. Quando já não se cobra nada em troca, nenhuma resposta prévia segundo qualquer esquema, mas apenas doa, entrega, oferece, oferta.
         Daí que o estudo precisa mesmo aparecer como a expressão de um mundo possível, desconhecido do estudante. O estudo implica, envolve, aprisiona em um mundo. Trata-se mesmo de uma pluralidade de mundos; o pluralismo do estudo não diz respeito apenas à multiplicidade das coisas e de matérias, mas também à multiplicidade de mundos contidos em cada um deles. Estudar é desenvolver esses mundos desconhecidos, ir tão longe quanto for possível nesses mundos que permanecem envolvidos nos livros, nos saberes, nos conhecimentos. Os mundos da biologia, das letras, da história, dos territórios geográficos, dos números, da escrita. Há tantas histórias e tantos mundos contidos aí, tantas histórias e tantos mundos capazes de tocar, de mobilizar, de provocar o estudo. Porque não desenvolvê-los? Há, portanto, uma contradição no estudo. Um estudante não pode embarcar no estudo sem desembocar em mundos que se formaram sem ele, que se formaram com outras pessoas, onde ele é, de início, senão um objeto como qualquer outro. Estudar é viver o desconhecido. O estudo exprime mundos dos quais o estudante não faz parte ou não faz parte ainda, mas justamente por isso delineia a imagem de mundos possíveis onde outros modos de existir seriam ou são preferidos. O que dá ao estudante uma sensação de alegria incomum. Ele pode ser mais ou menos do que ele é, pode mexer, remexer, inventar. Afinal, o estudo encontra seu lugar: afirmação, alegria e desejo.
         O movimento do estudo nos dá também uma idéia de sala de aula. Não, não precisamos falar a língua do estudante, nem os estudantes à nossa. Ninguém precisa ser igual a ninguém, nem aos colegas de sala nem aos professores. Só precisamos usar a distância que nos separa de outro modo e à nosso favor. É por meio dela que procuramos aprender algo sobre o questionamento do estudar. O estudo é o desvio que fala com o desvio das palavras e das coisas. As coisas são precisam ser o que são, nem as palavras significarem sempre as mesmas coisas. Nós não precisamos usar sempre o mesmo esqueleto. Em nossa totalidade retumbante, nós não acabaremos nunca com a questão, com uma questão, com as questões dos estudantes. Não porque ainda haja muito a questionar, mas porque a questão, surgida no movimento do estudo, nos põe em contato com o que não tem fim, o que aquilo que ainda não foi inventado, com o impensável, com o impalpável, como o invivível. O problema é que na sala de aula dos que sabem, existem respostas mecânicas e repetitivas, um falar de acordo com o que está estabelecido, que recobre e satura a palavra com a imposição de uma série de esquemas convencionais de interpretação. Na sala de aula, as respostas estão órfãs de perguntas. Mas só as perguntas poderiam fazer retroceder a arrogância das respostas. Mas respostas cobrem todas as perguntas e, não são, elas mesmas perguntas. Só uma resposta que fosse, ela mesma, pergunta retrocederia o suficiente para abrir espaço para o estudante. Quando a sala de aula, mais do que dá respostas, doa perguntas.
Permitam-me, para encerrar, dar três exemplos “reais e concretos” para que não acusem esta segunda parte da fala de utopia como se utopia fosse algum tipo de palavra feia e pesada, quase que como um palavrão horrendo. Embora, para mim, toda a vez que ouço a palavra utopia ser evocada em nossos círculos educacionais com esse tom meio acusatório e meio blasfematório, sempre soa mais como se fosse um tipo de avenida movimentada e perigosa que nós recusamos a atravessar, por medo, conforto ou compaixão ou pelas três coisas juntas.

Primeiro. Desculpem-me novamente o tom biográfico desse exemplo, mas ele logo passa. Sinceramente, não sei o que é não gostar de estudar e, confesso, isso me parece terrível. Não sei o que é passar uma semana sem iniciar uma leitura de um novo livro. E, não, isso não é um mérito, nem é um esforço meu nem mesmo de minha mãe e toda sua dedicação minuciosa em alfabetizar seus próprios filhos. “Ela, a escola, deixou minha filha burra!” – me disse certa vez um amiga, mãe de uma menina de 3 anos, lamentando a obrigatoriedade da escola e como ela tinha simplesmente destruído tudo que ela tinha demorado aqueles três pequenos anos para construir. “Não, não darei esse prazer à escola”, repetia a minha mãe. O que sei é que sinto uma necessidade absurda, como quem tem fome ou sede, ou as duas coisas. Agradeço, nunca fiz isso em público, a minha mãe pelo tipo de desprendimento e desraizamento que o estudo exige daquele que estuda. Fiquemos só com os últimos 6 anos, aos 16, entrava na universidade para cursar Licenciatura em Biologia à contragosto de todos os meus professores, que no mínimo achavam um desperdício a minha opção. Não sei, a questão é que a vida sempre me interessou e, naquele momento, a Biologia parecia a escolha mais adequada.
No primeiro período, veio um estágio de dois meses na UFAL - queria pesquisar corais – seguido de três anos de bolsa de iniciação científica em ecologia trófica de peixes – havia me apaixonada pela professora. Resumindo pesquisava o que os peixes comiam. Mas o bom de uma grade curricular é que a gente nem sempre estuda o que quer! Vieram as disciplinas da educação e das humanas! As leituras densas, longas e demoradas, que exigiam horas e muitas do que saber a reprodução das cianofíceas ou a morfologia dos cumaceas. Pois é, eu também gostava de ler, reencontrei o prazer nas aulas de ciências sociais, antropologia, sociologia. Mas tenho que assumir, enquanto estudante, aprendi muito mais sobre o aprender com Clarice Lispector, Fernando Pessoa, Franz Kakfa, Walser, Melville, Bartebly, Henrique Villa-Matas. Foi aí que veio o curso de teatro - queria desenvoltura na frente do público - e o convite da Pró-reitoria de Extensão para reativar o grupo de teatro da UFS. Lá estava eu, lendo Biologia e Ecologia dos Cordados, Teorias do Teatro e Paulo Freire. Onde é que isso podia dar? Uma monografia sobre Teatro e Ensino de Ciências, premiada pela IDEA, seguida do Mestrado em Educação. Em Ensino de Ciências, seria a opção mais óbvia. Mas eu já não podia voltar atrás naquilo tudo que tinha lido e vivido, seria em filosofia do currículo e teoria do teatro na UFMG. E lá, estou hoje, aqui, professor de Filosofia Geral da UFS, causando estranheza, um tanto de espanto e a mesma dose desconfiança. Para onde vou agora? Não sei, não quero saber e, sinceramente, tenho raiva de quem sabe. Vou deixando os estudos me levarem para onde quiserem. Eu já não posso querer nada.  Garanto tem sido muito mais interessante.
Mas isso pode parecer ainda um caso especial dentre muitos. Vejamos, então, o segundo exemplo. Mais distante, menos pessoal e mais acadêmico. Joseph Jacotot, um revolucionário na França de 1789, exilado nos Países Baixos e estudante de literatura francesa na Universidade de Louvain, viu-se, em 1818, obrigado a afastar-se dos seus trinta anos de experiência pedagógica ao se deparar com um grupo de estudantes, a maioria dos quais não sabia uma palavra sequer em francês. Joseph era um pedagogo desacomodo, desajeitado pela impossibilidade da transmissão, da explicação e da tranqüilizadora e aparente compreensão, e que ignorava por completo o idioma holandês de seus alunos. Um pedagogo cujas razões parecem sempre ter fugido dos presídios metodológicos. Diante da impossibilidade de transmissão que se anunciava, por meio de um intérprete, Joseph propõe a seus alunos a leitura de uma edição bilíngüe de Telêmaco, publicada na época em Bruxelas. Propõe que a leiam, por conta própria, sem as explicações que os pudessem conduzir ou facilitar a aprendizagem. Apenas propõe que leiam, com o auxílio da tradução e que, através do exercício de repetição e observação, tentassem entender e, depois, contassem o que leram, no desafio de produzir um texto em francês.  É claro que Joseph não teve essa idéia quando começou as aulas, acreditava que sua função era desenvolver a cognição dos seus alunos em literatura francesa e que a língua era uma barreira. É claro que quando fez a proposta Joseph estava na sua última tentativa, pensando, como qualquer um, que tudo aquilo podia dar errado. Qual não foi a surpresa? Os textos saíram, saíram, inclusive melhor do que esperado.
O mestre Jacotot, nos primórdios do século XIX, sentiu na pele toda a ambigüidade e a ambivalência em relação a uma sala de aula. Recusou-se à absorção definitiva da língua do aluno – coisa que ele não poderia ser, mas não se deixou seduzir pela tirania de sua própria língua. Ali, não havia privilégios nem privilegiados. O propósito de uma sala de aula, diz Joseph, é aquele de poder ensinar o que se ignora, ao mesmo tempo em que o aluno possa utilizar a sua própria inteligência. Mas o professor ignora não é aquele ignora o saber, os conhecimentos, os livros, o que Joseph ignorava era o caminho inaudito que cada um faz na imensa floresta de palavras.  O intenso movimento na própria língua, no próprio de ser e estar no mundo, que faz com que o aluno conseguisse por em funcionamento seu próprio pensamento. Pois é, nós nunca saberemos como ninguém aprende. O Estudar inverte o jogo: se para nós, hoje, a sala de aula parte de uma distância desigual entre alunos e mestre para chegar à igualdade das mentes, insiste na estrutura da língua da qual não se pode fugir, explica com palavras de outros a ordem das palavras do mesmo, apaga toda possibilidade de outras vozes; agora, trata-se de oferecer não a explicação regressiva, mas a experiência da expressão, a experimentação com aquilo que se faz tocar e ver.
Mas é esse professor francês pode ainda soar exótico demais, distante demais da nossa realidade, coisa de primeiro mundo. Deixem-me trazer o último exemplo um pouco mais de perto e um pouco mais palpável. Dani é uma professora da Rede Municipal de Belo Horizonte que tive a oportunidade de acompanhar durante suas aulas. Formada em pedagogia pela UFMG, especialista em alfabetização e literatua, Dani trabalha, hoje, alfabetizando, especialmente, meninos e meninas com dificuldades de aprendizagem nos chamados Reagrupamentos Escolares ou Projetos de Intervenção Pedagógica. Os Reagrupamentos constituem lugares onde se trabalham as dificuldades que certos alunos apresentam na aprendizagem de determinados conteúdos identificadas entre os alunos nas avaliações diagnósticas da rede. A função de Dani é fazer os alunos e as alunas lerem. Teria coisa mais nobre que isso? Mas ao mesmo tempo mais difícil? Dani, por certo, já tinha tentado de tudo, os alunos não sabiam escrever direito, liam mal e errado, colorir, a coisa mais óbvia do mundo infantil, era impensável.
Dani nunca leu Jacotot, confessou-me depois, mas tomada de uma espécie de desespero mobilizador, já tinha tentado de tudo, de todas as técnicas, de todos os métodos, arrematou, como que num transe, todos livros de poesias de sua estante particular. Pegou Cecília Meireles, Manuel Bandeira, Fernando Pessoa, Oswald de Andrade, Paulo Leminski, Cora Coralina, abriu um espaço em círculo no meio da sala de aula, diante dos rostos apreensivos de seus alunos e, ali, no vazio que se instaurou, atirou os livros no chão como quem levanta uma bandeira branca na guerra. Só lhes disse uma única coisa: vamos, leiam, é tudo de vocês! Os alunos atiraram-se curiosos sobre os livros de poesias, espécimes raros naquela aula de leitura e escrita. E eis que se passaram, os livros foram lidos, para não dizer devorados por meninas e meninos famintos como lobos. Livros viraram companheiros de todas as horas, arrastados debaixo dos braços por todos os lados, havia até quem dormisse com ele. Recitar poesia no meio do pátio virou febre juvenil, desafio diário entre os estudantes que pediam a qualquer um que entrasse na escola – eu fui um deles, atenção para ouvir suas declamações. Perguntada sobre como explicava aquilo, Dani respondia com um sorriso zombeteiro e relembrando um famoso personagem da dramaturgia nordestina: não sei, só sei que foi assim.  
O motivo que impulsionou aqueles alunos foi muito simples. Para alguns, esse motivo, eu espero, poderá ser suficiente por si mesmo. É a curiosidade, novamente outro nome para a vontade, o desejo, o toque, o choque. A única espécie de curiosidade que vale a pena ser praticada com um pouco de obstinação. Não aquela que procura assimilar o que convém conhecer, mas que permite separar-se de si mesmo. De que valeria a obstinação do saber se ele assegurasse apenas a aquisição de conhecimentos e não, de certa maneira, e tanto quanto possível, o descaminho daquele que conhece? Existem momentos na vida de uma sala de aula, Dani e Jacotot nos dizem isso, onde a questão de saber se se pode pensar diferentemente do que se pensa, e perceber diferentemente do que se vê, é indispensável para continuar a ensinar. Não se trata de mudar métodos de ensino, refinar técnicas pedagógicas, encher a sala de aula e nossas cabeças de uma parafernália pedagógica inigualável. Ninguém precisa voltar a inventar a pólvora ou roda. Ninguém precisa mudar sua metodologia, cada um pode manter sua aula do jeito que está desde que se permita explorar o que pode ser mudado, em seu próprio pensamento, através do exercício de um saber que lhe é estranho. Arrancar de nós mesmos a parte que permanece aderente à margem do nascimento, à vizinhança do parentesco, à casa das aldeias dos usários, à cultura da língua e a rigidez dos hábitos.  
Pois em última instância, ensinar é também abrir um espaço para que aquele que estuda utilize de maneira de diferente nosso saber e nosso desejo de educá-lo – para que seja outro, e não o mesmo indivíduo.  O fascinante na aventura intelectual do ensino é precisamente o fato de sermos diferentes daqueles que nos precederam, e que provavelmente nossos estudantes seguirão um caminho bastante diferente do nosso. E, no entanto, é aí, nesse pátio de diferenças, que inscreveremos aquilo que transmitiremos. Encontrar nesse percurso, nos contam esses três exemplos, algo que leve a experimentação, que provoque o estudar e o espantar-se. E, isso, nenhum estudante pode fazer por si mesmo. Embora estudar seja um ato solitário, seu disparador é um ato solidário. É para isso que, nós, professores, estamos lá, eles contam com os nossos saberes, nossos conhecimentos, nossas experiências, para encontrar nelas algo, sequestrar de nós algo que o mobilize. Como na história de Paul Auster. Um amigo andava desesperadamente atrás de um livro que queria muito, mas não conseguia encontrar em lugar algum. Após meses de busca, passando pela Grand Central Station, em Nova York, avista uma moça que lia exatamente o cobiçado livro. Aborda-a, conta que andava atrás do livro e pergunta onde poderia encontrá-lo. Ela diz que o livro é maravilhoso. “É para você”, disse. “Mas é seu”, disse ele. “Era”, respondeu ela, “mas terminei de lê-lo. Vim aqui hoje para dá-lo a você”. Ensinar não é para si. É para o outro. Um saber não é para ostentar. É para dar. Discretamente. Na cumplicidade de uma amizade. Ou na clandestinidade de um amor. Estudar não é guardar tesouros. Porque não é para dentro, mas para fora. Aprender é gratuito. E, sem que você o saiba, acaba depositado. No fundo perdido de nossas vidas.
* Palestra de abertura proferida na Semana Pedagógica dos Colégios Dinâmico e Michelangêlo.

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sábado, 15 de outubro de 2011

Nada-dor



Partir. Sair. Deixar-se um dia perder a cabeça. Tornar-se vários, desbravar o exterior, quebrar em algum lugar. Três modos de se expor. Não posso aprender sem exposição, às vezes perigosa. Nunca mais saberei quem sou, onde estou, de onde venho, aonde vou, por onde passar. Eu me exponho às estranhezas. Sou um estranho. Nenhum aprendizado dispensa a viagem. A educação empurra para fora. Parte, sai, dilacera. Sai do ventre de minha mãe, do berço, da sombra oferecida pela casa e pela paisagem juvenil. Ao vento, sob a chuva, do lado de fora os abrigos são poucos. Viagem das crianças, eis o sentido lato da palavra grega pedagogia. Aprender: lançar-se a errância. Explodir em pedaços para se lançar em um caminho de destino incerto exige certo heroísmo trágico que, sobretudo, o louco parece capaz de mostrar. Enlouquecer: conduzir para outro lugar, nadar. Bifurcar a direção natural das coisas, a dita natural pelo menos. Tomar o corpo, a língua, a alma a contrapelo. Um caminho transversal que conduz a um lugar ignorado. Jamais a estrada pode ser fácil, melhor atravessar o rio a nado.
Ninguém sabe nadar de fato antes de ter atravessado, sozinho, um rio largo e impetuoso, um braço de mar agitado. Só existe chão em uma piscina, território para pedestres em massa. Nada aprendi sem que tenha partido, se é que aprendi algo, se é que se aprende algo, nem ensinei ninguém nem ninguém me ensinou nada sem convidar-me a deixar forçosamente o ninho. Partir exige um dilaceramento que arranca uma parte do corpo, uma parte do meu corpo, a parte que permanece aderente à margem do nascimento, à vizinhança do parentesco, à casa, à aldeia dos usos, à cultura da língua e a rigidez dos hábitos. Quem não se mexe nada aprende. Sim, parti, dividir-me em partes. Meus semelhantes talvez me condenem como um irmão desgarrado. Olha lá vai ele: o louco! Tornei-me vários, às vezes, quase sempre, incoerente como o universo que, no início, explodiu, contam por aí, com um enorme estrondo. Sou feito de estrondos. Parti, e tudo então começou, pelo menos a minha explosão em mundos à parte.
Por onde, logo esta questão coloca novos dispêndios. Um professor, desses como todos nós, conhece o lugar para onde leva o nadador, que ainda o ignora mas a seu tempo o descobrirá. Esse espaço existe, terra, cidade, língua, gesto ou teorema. A viagem é para lá! -  diz a placa. Mas é que a corrida começou a seguir curvas de nível, segundo um perfil, cada vez mais estranho, dependente ao mesmo tempo das minhas pernas e do terreno que elas atravessam, chão pedregoso, deserto ou mar, pântano ou parede. Ora, quase sempre desconhecia o lugar e o uso que podia fazer das minhas pernas. Mas é que ninguém te conta da passagem, do sofrimento, da coragem, dos tormentos do náufrago provável, da rachadura aberta no tórax pelo estiramento dos braços, das pernas e do longo traço de esquecimento e de memória que marca os eixos desses rios infernais, chamados de angústias por nossos ancestrais.
Parti, mergulhei. Depois de ter deixado a margem, continuei durante algum tempo muito mais perto dela do que da outra à sua frente, tempo bastante, pelo menos, para meu corpo aplicar-se ao cálculo e silenciosamente refletisse: você ainda pode voltar! Até um certo limiar, conservei a segurança: o mesmo que dizer: não, você ainda não partiu! Do outro lado da aventura: um pé confia na minha aproximação desde que tenha ultrapassado um segundo limiar: você está tão próximo da margem que pode dizer que já chegou! Nos dois casos, não importa: terra e chão. Eu não nadei, esperava nadar, como quem salta, decola e atinge o chão, mas não permanece em vôo. Talvez seja eu uma andorinha desengonçada. Nadar exige saber que um segundo rio corre neste que todo mundo vê, atrás ou à frente as margens desaparecem.
Um dia, a qualquer momento, em todo o momento, cada um passa pelo meio do rio, estado estranho de mudança de fase, que se pode chamar de dor: nada-dor. Quão hipersensíveis, afetados, rejeitando a afetação, ficamos no momento de transpor os portais. Esse estado vibra com uma instabilidade entre o equilíbrio e o desequilíbrio, entre o ser e o nada. A dor habita um lugar central e periférico: em forma de estrela refletida na água.  Na direção do centro do plexo , uma plataforma estrelada lança seus ramos virtuais : um buquê. É este o estado de sensibilidade vibrante, alterada, alerta, desperta, chamamento para a fera que rasteja, espreita, espia, todos os sentimentos em todos os sentidos para todos os lados. Era uma vez, o sol.

sábado, 22 de janeiro de 2011

o perigo batom: ninguém é mais bicha do que eu

O barulho é capaz de incomodar qualquer professor. Das conversas paralelas ao celular que toca, o barulho desconcentra, atrapalha, perturba, dispersa. O barulho atravanca a ordem do dia, o plano de aula, os objetivos pedagógicos. O barulho é mesmo um deslocamento para fora das margens da sala de aula canônica; uma requebrada, uma saída do eixo, mas que se repete cada vez e cada dia mais. O mais excitante é que na escola: tudo soa, tudo é som. Cada ínfima parte do mundo escolar tem seu próprio ruído, não necessariamente audível. Nós, seres tecno-humanos, necessitamos cada vez mais de canais de amplificação para aproximarmos nossa escuta do inaudível, da multiplicidade sonora que nos rodeia e que ignoramos. Isso é barulho, isso é sexo. Afinal, não só as chamadas minorias sexuais estão muito mais audíveis e, por conseqüência, sua perturbação sonora, como também podemos falar de um espécie de erotização e sexualização da cultura contemporânea que tem enchido a vida da escolar de som e fúria sexual.
A sexualidade é mesmo o barulho da escola. Seu plano, se é que é preciso apresentar algum, é o curto-circuito: arte da alteração, da expressão da potência, da transformabilidade. Aqui, nem se trata de encontrar espaço na escola para o ruído do sexo, mas de roer lentamente com o sexo a partitura pedagógica, o desejo como coreografia e os corpos com tonalidade fixa. A sexualidade na escola parte de uma revolução por contaminação, parte de uma desestabilização por introduzir o órgão inesperado, o ruído, o barulho. Quando nós, prodigiosos instrumentistas deitamos na ribalta, prontos para um dueto de violino e piano, esbarramos em fagotes, trombones, contrabaixos, oboés, harpas, marimbas e, por que não, secadores de cabelo, pratos, copos. Não podemos mover os dedos sem esbarrarmos em instrumentos que não sabemos tocar. O anseio pelo cânone e a tradição imediatista da pedagogia no levam logo a perguntar: o que fazer? Como tocar?
Antes de repostas precipitadas, há de se perguntar as condições que possibilitaram a emergência dessas questões, dos sujeitos e das práticas que elas envolvem, pois nem só de rock, noise ou musica experimental vive a pedagogia. Podemos muito bem imaginar o ouvido, esse órgão sensorial, crescendo no interesse de investimento capitalístico a ponto de tornar a sexualidade o território de maior especulação e investimento político dos últimos séculos. Nunca se falou e se ouviu tanto sobre sexo nas novelas, nos programas, nas reportagens especiais do Fantástico, do Globo Repórter ou do Mais Você, na explosão de filmes, do cinema de arte a pornografia, nos novos estilos musicais, nos programas educacionais. Toda essa vontade de saber deixa claro que ainda vivemos sob a lógica da imposição da ordem do progresso, aquilo que aprendemos a chamar cretinamente de democracia, e o progresso da ordem, aquilo que é eufemismo para controle, valores tão caros mantidos pelos higienistas urbanos, sexuais e sonoros de plantão.  Coube aos fascismos nossos de todo o dia a erotização de mão única dos discursos políticos: o falocentrismo virou logocentrismo e a exceção não tem nenhum cabimento.
Precisamos, sim, de mais barulho na escola e na pedagogia! O atual reconhecimento por parte do investimento de capital e por vias legais é, bem verdade, um avanço social em certo sentido, mas deixar  de soar  como um avanço do controle, por outro lado.  Por mais que toda nossa epistemologia do armário libere espaços na matriz de inteligibilidade, na medida em que nossas lutas sociais se multiplicam em suas formas de manifestar-se, acabamos não sabemos bem em frente do que lutamos, já que perdemos paulatinamente a referência do espaço para a manifestação em nome de um estrategismo político. Esse carnaval ativista tem até cores de arco-íris e faz festas manifestos, um grande carnaval de rua. Gay virou produto, pós-colonial virou logomarca de música (Lady Gaga), de cinema (Do início ao fim) ou de seriado televiso (The L World).
Julia Serano, no seu Barrette Manifest aponta para o grau de perigo que parece conter para os homens heterossexuais, que orbitam em torno do poder, as presilhas de cabelo das meninas, assim como todas as coisas de garota. Ela diz: “eu sei disso porque, como uma mulher trans, eu sou agente duplo e vivi como um rapaz a maior parte da minha vida”. Pois bem, o perigo da bolsa, do colar e do batom, tão bem descrito nas cenas do filme iraniano Quando Buda explodiu de vergonha, não termina com o feminismo incluindo as mulheres no clube dos executivos ou dos políticos (leia-se com a eleição da primeira mulher presidente do Brasil), nem com a visibilidade gay (leia-se todos os projetos de Educação sem Homofobia) ou mesmo das mulheres pós-operatórias (vide toda a política de saúde pública para transexuais). Não termina com projetos de Educação em Sexualidade, como novas disciplinas ou com inclusão de temas transversais no currículo escolar. E é bom mesmo que não termine por aí. Sabem por quê? Simplesmente porque a escola é participe da homofobia, da violência de gênero, ela compõe toda uma série de instituições, discursos, tecnologias e técnicas do projeto de fundação do estado-nação heterosexista. Isso é Brasil!
Trata-se, aí, de tentar mobilizar o poder revolucionário do barulho que muitas vezes é tratado como insuportável na escola. E que carrega uma potência de revolução. Uma revolução por aglutinação, recombinação, por desvio de rota. Jogar o pinto no lixo, correr com a perereca pelo mato, arrastar a guitarra com uma caminhonete.  Trata-se de uma proliferação na pedagogia da sexualidade. Nem se trata sempre de fundir os termos da diferença sexual, mas de fazer bolinar o feminino e o masculino, como se fossem corpos prontos a serem seduzidos e desviados e postos fora do eixo. A ejaculação delicada da garota, os seios fartos com mamilos ouriçados do meu macho, cada centímetro dos corpos fazendo uma transição entre os dois lados da diferença. Uma diferença sem hierarquias ou distinção, uma diferença que é diferença em si mesmo. Não se trata, entretanto, de varrer a diferença sexual, ou antes, as muitas diferenças sexuais, para baixo do tapete, o bondoso discurso pedagógico do somos todos iguais. Trata-se talvez de contrapor à ordem sexopolítica do dia a dia da escola, uma ordem de sexopotências. Torcer o foco da pedagogia do sexo para a sexualidade da pedagogia.
Uma pedagogia da sexualidade não quer dizer necessariamente uma prática pedagógica que toma a sexualidade como conteúdo ensinável, mas refere-se antes a natureza pedagógica da própria experiência sexual. Uma pedagogia da sexualidade não quer essa gorda saúde dominante, pós-revolucionária, estável e bonachona, como se tivéssemos alcançado a quietude e a plenitude. Ela se excita sempre com as novas fronteiras, promove objetos de desejo que não podem ficar parados em uma vitrine. Nem se trata de vencer uma batalha final contra a moral pedagógica, mas de cutucá-la com uma vara curta ou com um dildo de 18 X 8.  Justapor pedagogia e sexualidade é propositadamente contaminar a pedagogia de sexualidade e orquestrar na pedagogia as potências e os limites de velocidade dos corpos sexuados. Pois se o corpo sexuado inserido em uma bipolaridade, embrenhado das normas de gênero ou constituído pelas artimanhas inatas e adquiridas da diferença sexual é aprendido em experiências pedagógicas, e, primordialmente, na escola, trata-se de dispor a pedagogia como um palanque sexual, uma sinfônica de ruídos a partir dos quais os desejos tenham permissão para fazer uma campanha infecciosa, uma música perturbadora. 
Há de consideramos a coragem política de uma pedagogia que quer pular a cerquinha da identidade pré-fabricada que lhe foi atribuída, percorrer o impensado, o abjeto da heterossexualidade compulsória. Se ninguém nasce mulher, homem, gay ou lésbica, torna-se em um percurso, essa pedagogia atravessa o inaudito do fascismo, vive os subterrâneos da ordem, fazendo um ninho no meio do trânsito, querendo tudo ou quase tudo. Creio que há manivelas o suficiente na engrenagem pedagógica para mover esse guindaste, para interromper as políticas de informação, para deformar, desinformar, reformar, transformar e inventar possibilidades súbitas, como se a interação entre os órgãos, que não são mais instrumentos na mão de uma torre de controle vestida de azul ou de rosa, se desse por fricção e não por plano de vôo. Pensemos, aqui, na célebre pergunta de D. H. Lawrence: por que minha mão deve ser vista como sendo vassala da mente que a dirige? E agora: porque os pedaços de uma genitália devem ser instrumentos de um sistema nervoso central azul-marinho ou rosa-carmim que os sujeita? Não é que as partes dos corpos sejam ou devam ser autônomas, mas é que uma pedagogia pode ser propositora de rotas de escapes das matrizes heteronormativas. O perigo do batom é uma conspiração com este fim: celebrar o que escapa.
A menina do biquíni azul, a protagonista do filme XXY, nasceu com tudo. A operação não aconteceu porque a médica se encantou com o pênis por vir, segurou com suas mãos e, vendo naquelas carnes minúsculas uma pica grossa como a do enfermeiro que trabalhava ao lado e dormia com ela no meio da semana, decidiu deixar a menina como estava. Nada, nem ninguém iriam colocar em questão a sua reputação, deixa a pica lá, chamemos a menina uma menina. E ela cresceu, o biquíni azul flutuando com suas costas no rio que levava ao mar. A menina de biquíni de bolinha azul se chamava Alex e mijava de pé segurando o próprio pinto. No diálogo mais bonito do filme XXY, na conversa entre a hermafrodita Alex e o menino que acabara de ser penetrado por ela, ele pergunta: qual dos dois você é? Ela: os dois. Ele: isso não pode ser. Ela: é você que me diz o que posso ser. Um breve silêncio. Ele pergunta: você gosta de homens ou de mulheres? Ela responde: eu não sei, e você? Pois é, uma pedagogia da sexualidade não prende a respiração diante do abjeto, ela respira e, por isso, inspira e, logo, conspira. Uma pedagogia da sexualidade vem para politizar as eróticas, as mais miudinhas e as mais escandalosas na escola. Ninguém é mais bicha do que ela, eu, você ou todos nós.