sábado, 15 de outubro de 2011

Nada-dor



Partir. Sair. Deixar-se um dia perder a cabeça. Tornar-se vários, desbravar o exterior, quebrar em algum lugar. Três modos de se expor. Não posso aprender sem exposição, às vezes perigosa. Nunca mais saberei quem sou, onde estou, de onde venho, aonde vou, por onde passar. Eu me exponho às estranhezas. Sou um estranho. Nenhum aprendizado dispensa a viagem. A educação empurra para fora. Parte, sai, dilacera. Sai do ventre de minha mãe, do berço, da sombra oferecida pela casa e pela paisagem juvenil. Ao vento, sob a chuva, do lado de fora os abrigos são poucos. Viagem das crianças, eis o sentido lato da palavra grega pedagogia. Aprender: lançar-se a errância. Explodir em pedaços para se lançar em um caminho de destino incerto exige certo heroísmo trágico que, sobretudo, o louco parece capaz de mostrar. Enlouquecer: conduzir para outro lugar, nadar. Bifurcar a direção natural das coisas, a dita natural pelo menos. Tomar o corpo, a língua, a alma a contrapelo. Um caminho transversal que conduz a um lugar ignorado. Jamais a estrada pode ser fácil, melhor atravessar o rio a nado.
Ninguém sabe nadar de fato antes de ter atravessado, sozinho, um rio largo e impetuoso, um braço de mar agitado. Só existe chão em uma piscina, território para pedestres em massa. Nada aprendi sem que tenha partido, se é que aprendi algo, se é que se aprende algo, nem ensinei ninguém nem ninguém me ensinou nada sem convidar-me a deixar forçosamente o ninho. Partir exige um dilaceramento que arranca uma parte do corpo, uma parte do meu corpo, a parte que permanece aderente à margem do nascimento, à vizinhança do parentesco, à casa, à aldeia dos usos, à cultura da língua e a rigidez dos hábitos. Quem não se mexe nada aprende. Sim, parti, dividir-me em partes. Meus semelhantes talvez me condenem como um irmão desgarrado. Olha lá vai ele: o louco! Tornei-me vários, às vezes, quase sempre, incoerente como o universo que, no início, explodiu, contam por aí, com um enorme estrondo. Sou feito de estrondos. Parti, e tudo então começou, pelo menos a minha explosão em mundos à parte.
Por onde, logo esta questão coloca novos dispêndios. Um professor, desses como todos nós, conhece o lugar para onde leva o nadador, que ainda o ignora mas a seu tempo o descobrirá. Esse espaço existe, terra, cidade, língua, gesto ou teorema. A viagem é para lá! -  diz a placa. Mas é que a corrida começou a seguir curvas de nível, segundo um perfil, cada vez mais estranho, dependente ao mesmo tempo das minhas pernas e do terreno que elas atravessam, chão pedregoso, deserto ou mar, pântano ou parede. Ora, quase sempre desconhecia o lugar e o uso que podia fazer das minhas pernas. Mas é que ninguém te conta da passagem, do sofrimento, da coragem, dos tormentos do náufrago provável, da rachadura aberta no tórax pelo estiramento dos braços, das pernas e do longo traço de esquecimento e de memória que marca os eixos desses rios infernais, chamados de angústias por nossos ancestrais.
Parti, mergulhei. Depois de ter deixado a margem, continuei durante algum tempo muito mais perto dela do que da outra à sua frente, tempo bastante, pelo menos, para meu corpo aplicar-se ao cálculo e silenciosamente refletisse: você ainda pode voltar! Até um certo limiar, conservei a segurança: o mesmo que dizer: não, você ainda não partiu! Do outro lado da aventura: um pé confia na minha aproximação desde que tenha ultrapassado um segundo limiar: você está tão próximo da margem que pode dizer que já chegou! Nos dois casos, não importa: terra e chão. Eu não nadei, esperava nadar, como quem salta, decola e atinge o chão, mas não permanece em vôo. Talvez seja eu uma andorinha desengonçada. Nadar exige saber que um segundo rio corre neste que todo mundo vê, atrás ou à frente as margens desaparecem.
Um dia, a qualquer momento, em todo o momento, cada um passa pelo meio do rio, estado estranho de mudança de fase, que se pode chamar de dor: nada-dor. Quão hipersensíveis, afetados, rejeitando a afetação, ficamos no momento de transpor os portais. Esse estado vibra com uma instabilidade entre o equilíbrio e o desequilíbrio, entre o ser e o nada. A dor habita um lugar central e periférico: em forma de estrela refletida na água.  Na direção do centro do plexo , uma plataforma estrelada lança seus ramos virtuais : um buquê. É este o estado de sensibilidade vibrante, alterada, alerta, desperta, chamamento para a fera que rasteja, espreita, espia, todos os sentimentos em todos os sentidos para todos os lados. Era uma vez, o sol.

sábado, 22 de janeiro de 2011

o perigo batom: ninguém é mais bicha do que eu

O barulho é capaz de incomodar qualquer professor. Das conversas paralelas ao celular que toca, o barulho desconcentra, atrapalha, perturba, dispersa. O barulho atravanca a ordem do dia, o plano de aula, os objetivos pedagógicos. O barulho é mesmo um deslocamento para fora das margens da sala de aula canônica; uma requebrada, uma saída do eixo, mas que se repete cada vez e cada dia mais. O mais excitante é que na escola: tudo soa, tudo é som. Cada ínfima parte do mundo escolar tem seu próprio ruído, não necessariamente audível. Nós, seres tecno-humanos, necessitamos cada vez mais de canais de amplificação para aproximarmos nossa escuta do inaudível, da multiplicidade sonora que nos rodeia e que ignoramos. Isso é barulho, isso é sexo. Afinal, não só as chamadas minorias sexuais estão muito mais audíveis e, por conseqüência, sua perturbação sonora, como também podemos falar de um espécie de erotização e sexualização da cultura contemporânea que tem enchido a vida da escolar de som e fúria sexual.
A sexualidade é mesmo o barulho da escola. Seu plano, se é que é preciso apresentar algum, é o curto-circuito: arte da alteração, da expressão da potência, da transformabilidade. Aqui, nem se trata de encontrar espaço na escola para o ruído do sexo, mas de roer lentamente com o sexo a partitura pedagógica, o desejo como coreografia e os corpos com tonalidade fixa. A sexualidade na escola parte de uma revolução por contaminação, parte de uma desestabilização por introduzir o órgão inesperado, o ruído, o barulho. Quando nós, prodigiosos instrumentistas deitamos na ribalta, prontos para um dueto de violino e piano, esbarramos em fagotes, trombones, contrabaixos, oboés, harpas, marimbas e, por que não, secadores de cabelo, pratos, copos. Não podemos mover os dedos sem esbarrarmos em instrumentos que não sabemos tocar. O anseio pelo cânone e a tradição imediatista da pedagogia no levam logo a perguntar: o que fazer? Como tocar?
Antes de repostas precipitadas, há de se perguntar as condições que possibilitaram a emergência dessas questões, dos sujeitos e das práticas que elas envolvem, pois nem só de rock, noise ou musica experimental vive a pedagogia. Podemos muito bem imaginar o ouvido, esse órgão sensorial, crescendo no interesse de investimento capitalístico a ponto de tornar a sexualidade o território de maior especulação e investimento político dos últimos séculos. Nunca se falou e se ouviu tanto sobre sexo nas novelas, nos programas, nas reportagens especiais do Fantástico, do Globo Repórter ou do Mais Você, na explosão de filmes, do cinema de arte a pornografia, nos novos estilos musicais, nos programas educacionais. Toda essa vontade de saber deixa claro que ainda vivemos sob a lógica da imposição da ordem do progresso, aquilo que aprendemos a chamar cretinamente de democracia, e o progresso da ordem, aquilo que é eufemismo para controle, valores tão caros mantidos pelos higienistas urbanos, sexuais e sonoros de plantão.  Coube aos fascismos nossos de todo o dia a erotização de mão única dos discursos políticos: o falocentrismo virou logocentrismo e a exceção não tem nenhum cabimento.
Precisamos, sim, de mais barulho na escola e na pedagogia! O atual reconhecimento por parte do investimento de capital e por vias legais é, bem verdade, um avanço social em certo sentido, mas deixar  de soar  como um avanço do controle, por outro lado.  Por mais que toda nossa epistemologia do armário libere espaços na matriz de inteligibilidade, na medida em que nossas lutas sociais se multiplicam em suas formas de manifestar-se, acabamos não sabemos bem em frente do que lutamos, já que perdemos paulatinamente a referência do espaço para a manifestação em nome de um estrategismo político. Esse carnaval ativista tem até cores de arco-íris e faz festas manifestos, um grande carnaval de rua. Gay virou produto, pós-colonial virou logomarca de música (Lady Gaga), de cinema (Do início ao fim) ou de seriado televiso (The L World).
Julia Serano, no seu Barrette Manifest aponta para o grau de perigo que parece conter para os homens heterossexuais, que orbitam em torno do poder, as presilhas de cabelo das meninas, assim como todas as coisas de garota. Ela diz: “eu sei disso porque, como uma mulher trans, eu sou agente duplo e vivi como um rapaz a maior parte da minha vida”. Pois bem, o perigo da bolsa, do colar e do batom, tão bem descrito nas cenas do filme iraniano Quando Buda explodiu de vergonha, não termina com o feminismo incluindo as mulheres no clube dos executivos ou dos políticos (leia-se com a eleição da primeira mulher presidente do Brasil), nem com a visibilidade gay (leia-se todos os projetos de Educação sem Homofobia) ou mesmo das mulheres pós-operatórias (vide toda a política de saúde pública para transexuais). Não termina com projetos de Educação em Sexualidade, como novas disciplinas ou com inclusão de temas transversais no currículo escolar. E é bom mesmo que não termine por aí. Sabem por quê? Simplesmente porque a escola é participe da homofobia, da violência de gênero, ela compõe toda uma série de instituições, discursos, tecnologias e técnicas do projeto de fundação do estado-nação heterosexista. Isso é Brasil!
Trata-se, aí, de tentar mobilizar o poder revolucionário do barulho que muitas vezes é tratado como insuportável na escola. E que carrega uma potência de revolução. Uma revolução por aglutinação, recombinação, por desvio de rota. Jogar o pinto no lixo, correr com a perereca pelo mato, arrastar a guitarra com uma caminhonete.  Trata-se de uma proliferação na pedagogia da sexualidade. Nem se trata sempre de fundir os termos da diferença sexual, mas de fazer bolinar o feminino e o masculino, como se fossem corpos prontos a serem seduzidos e desviados e postos fora do eixo. A ejaculação delicada da garota, os seios fartos com mamilos ouriçados do meu macho, cada centímetro dos corpos fazendo uma transição entre os dois lados da diferença. Uma diferença sem hierarquias ou distinção, uma diferença que é diferença em si mesmo. Não se trata, entretanto, de varrer a diferença sexual, ou antes, as muitas diferenças sexuais, para baixo do tapete, o bondoso discurso pedagógico do somos todos iguais. Trata-se talvez de contrapor à ordem sexopolítica do dia a dia da escola, uma ordem de sexopotências. Torcer o foco da pedagogia do sexo para a sexualidade da pedagogia.
Uma pedagogia da sexualidade não quer dizer necessariamente uma prática pedagógica que toma a sexualidade como conteúdo ensinável, mas refere-se antes a natureza pedagógica da própria experiência sexual. Uma pedagogia da sexualidade não quer essa gorda saúde dominante, pós-revolucionária, estável e bonachona, como se tivéssemos alcançado a quietude e a plenitude. Ela se excita sempre com as novas fronteiras, promove objetos de desejo que não podem ficar parados em uma vitrine. Nem se trata de vencer uma batalha final contra a moral pedagógica, mas de cutucá-la com uma vara curta ou com um dildo de 18 X 8.  Justapor pedagogia e sexualidade é propositadamente contaminar a pedagogia de sexualidade e orquestrar na pedagogia as potências e os limites de velocidade dos corpos sexuados. Pois se o corpo sexuado inserido em uma bipolaridade, embrenhado das normas de gênero ou constituído pelas artimanhas inatas e adquiridas da diferença sexual é aprendido em experiências pedagógicas, e, primordialmente, na escola, trata-se de dispor a pedagogia como um palanque sexual, uma sinfônica de ruídos a partir dos quais os desejos tenham permissão para fazer uma campanha infecciosa, uma música perturbadora. 
Há de consideramos a coragem política de uma pedagogia que quer pular a cerquinha da identidade pré-fabricada que lhe foi atribuída, percorrer o impensado, o abjeto da heterossexualidade compulsória. Se ninguém nasce mulher, homem, gay ou lésbica, torna-se em um percurso, essa pedagogia atravessa o inaudito do fascismo, vive os subterrâneos da ordem, fazendo um ninho no meio do trânsito, querendo tudo ou quase tudo. Creio que há manivelas o suficiente na engrenagem pedagógica para mover esse guindaste, para interromper as políticas de informação, para deformar, desinformar, reformar, transformar e inventar possibilidades súbitas, como se a interação entre os órgãos, que não são mais instrumentos na mão de uma torre de controle vestida de azul ou de rosa, se desse por fricção e não por plano de vôo. Pensemos, aqui, na célebre pergunta de D. H. Lawrence: por que minha mão deve ser vista como sendo vassala da mente que a dirige? E agora: porque os pedaços de uma genitália devem ser instrumentos de um sistema nervoso central azul-marinho ou rosa-carmim que os sujeita? Não é que as partes dos corpos sejam ou devam ser autônomas, mas é que uma pedagogia pode ser propositora de rotas de escapes das matrizes heteronormativas. O perigo do batom é uma conspiração com este fim: celebrar o que escapa.
A menina do biquíni azul, a protagonista do filme XXY, nasceu com tudo. A operação não aconteceu porque a médica se encantou com o pênis por vir, segurou com suas mãos e, vendo naquelas carnes minúsculas uma pica grossa como a do enfermeiro que trabalhava ao lado e dormia com ela no meio da semana, decidiu deixar a menina como estava. Nada, nem ninguém iriam colocar em questão a sua reputação, deixa a pica lá, chamemos a menina uma menina. E ela cresceu, o biquíni azul flutuando com suas costas no rio que levava ao mar. A menina de biquíni de bolinha azul se chamava Alex e mijava de pé segurando o próprio pinto. No diálogo mais bonito do filme XXY, na conversa entre a hermafrodita Alex e o menino que acabara de ser penetrado por ela, ele pergunta: qual dos dois você é? Ela: os dois. Ele: isso não pode ser. Ela: é você que me diz o que posso ser. Um breve silêncio. Ele pergunta: você gosta de homens ou de mulheres? Ela responde: eu não sei, e você? Pois é, uma pedagogia da sexualidade não prende a respiração diante do abjeto, ela respira e, por isso, inspira e, logo, conspira. Uma pedagogia da sexualidade vem para politizar as eróticas, as mais miudinhas e as mais escandalosas na escola. Ninguém é mais bicha do que ela, eu, você ou todos nós.